A infância mítica da psicanálise

Es gibt wichtigere Dinge als die Kindheit
Kafka1

“Há coisas mais importantes que a infância”. Não sou eu que o diz, é um cachorro, no último conto de Kafka. Poderia ser um lema para nosso tempo, que promove Peter Pan como ideal e que talvez tenha em Michael Jackson seu exemplo mais acabado de realização sintomática. “Há coisas mais importantes que a infância” poderia ser ainda uma bandeira útil para os psicanalistas que ainda acreditam que o infantil está no centro da sua disciplina. A psicanálise se ocupa da infância, sim, mas para livrar-nos dela, não para promover o retorno a não sei qual paraíso perdido.

Freud infere ou, melhor, inventa uma certa infância a partir das análises de neuróticos adultos. E alguns dos seus epígonos mais eminentes, como a sua filha Anna (mas, também, Karl Abraham e sua herdeira, Melanie Klein), projetaram esta infância fictícia sobre as crianças, que passaram a ser tratadas de acordo com esta versão neurótica do infantil. O passo seguinte foi planejar a higiene mental dos filhos, acompanhada de um projeto pedagógico para a libido. E tudo com miras à domesticação dos instintos e à profilaxia da doença psíquica.

Há na origem da denominada “psicanálise de crianças”, portanto, um mal- entendido e um esquecimento. Não foi lembrado que a “neurose infantil” era uma construção heurística destinada a dar sentido aos sintomas do adulto. E devido a um equívoco tal entidade clínica fictícia passou a ser tratada como o estado atual da “coisa mental” dos pequenos pacientes entregues para tratamento.

Todavia, o que deve ser tratado nos pequenos? Esta pergunta fundamental é poucas vezes formulada na hora de transformar um menino ou uma menina em analisante. O que pensamos dever tratar nos pacientes de pouca idade, com efeito, decide o modo de adaptação de um método e de um dispositivo que talvez funcionou para os sintomas dos pais, mas não necessariamente se aplica aos filhos. Assim, jogos e desenhos substituem a associação livre, e as fantasias pueris passam a ser tratadas como delírios de psicóticos. O psicanalista não crê no mundo encantado ou assombrado que supõe ser o do seu analisante mirim, assim como tampouco acredita no delírio do louco, mas age como se eles devessem crer. Nem mais nem menos que como quando fingimos acreditar em Papai Noel porque desejamos que nossos filhos acreditem. E porquê? Por aquilo já estabelecido há longa data pelo trabalho decisivo de Octave Mannoni: para mantermos nosso recalque incôlume com a ajuda da (suposta) inocência infantil. O sujeito suposto nada saber.

Consideramos o grande feito freudiano a descoberta da “perversidade polimorfa” do infans, sendo que o mestre vienense não fez senão desmontar o mito, relativamente recente na sua época, da criança inocente. Já dizia Santo Agostinho que nossos rebentos são criaturas pervertidas desde o nascimento pelo pecado original. Não nascemos inocentes, portanto, mas culpados, e a educação cristã consiste em servir-se da vontade para superar tal monstruosidade originária. Foi Rousseau, em fins do século dezoito, que veio com seu Émile para dizer que crianças não conhecem o mal; são uma tábula rasa a ser escrita ajuizadamente pelos educadores2. Freud só fez (e não é pouco!) retornar a Santo Agostinho, tratando Rousseau como um recalque.

A bem da verdade, a psicanálise infantil nasce já influenciada pelo evolucionismo do século XIX, segundo o qual o homem moderno está para o antigo, como o adulto para o infante. O que inclui a homologação, comum na época de Darwin, do selvagem e do menino. E a psicanálise do Joãzinho não demonstra o bem fundado da extrapolação metodológica, já que, se o caso do Klein Hans prova alguma coisa, é que a psicanálise engendra o que há para analisar. O jovem Graf, com efeito, foi sacrificado pelo pai no altar de Freud, com o intuito de confirmar ao mestre sua teoria sobre as orígens edípicas da neurose. O que não estaria nada mal, se assim tivesse sido reconhecido. Porém, ao se desconhecer que a neurose de Joãozinho tinha sido gerada no processo mesmo da sua “descoberta”, o que aconteceu foi antes uma fixação libidinal induzida e um sintoma artificial, que já não seria analisado, pois que foi tomado como a estrutura “natural” do sujeito terapizado.

Levar a sério as “memórias” de infância do nosso paciente adulto, para ele deduzir seu desejo inconsciente das vicissitudes da sua relação com as demandas parentais, é uma coisa. Outra, é tomar tal ficção por um dado objetivo para alimentar uma “psicologia evolutiva”. Esta última alternativa parece-me um erro, ao mesmo tempo epistemológico e clínico. Epistemológico, porque um método desenvolvido para pesquisar a neurose adulta não pode ser aplicado, sem mais nem menos, para elaborar uma psicoprofilaxe ou uma psicopedagogia. Clínico, porque ao vendermos barato o desejo do analista apenas duplicamos a alienação que as crianças já padecem, sem necessariamente facilitar-lhes o caminho para uma separação.

Que a alienação em questão seja de estrutura3 não quer dizer que o sujeito (infantil?) seja pret-à-porter. Resulta de um processo. E um processo leva um tempo, maior ou menor, mas leva um tempo. E as crianças sofrem ou fazem sintomas enquanto isso acontece. Não digo que não possam ou não devam ser assistidas durante as crises. Critico apenas a pressa em enquadrar nosologicamente seu pathos, sem levar em conta a diferença essencial que existe entre a neurose infantil que dá sentido aos sintomas dos adultos, e as neuroses das crianças, cuja teoria me parece até o presente bastante pobre.

Chamar o que se passa com elas de “neurose”, aliás, deveria ser apenas uma figura de linguagem, uma aproximação para abordar o problema. Já que, se convimos que a neurose resulta do complexo de Édipo e o sintoma, dos destinos do complexo de castração, então, denominar “neurose” o que acontece com quem se encontra no meio do drama em que estas engrenagens se encaixam só pode ser força de expressão.

Melanie Klein foi bastante sensível a este problema, tanto que precisou inventar categorias ad hoc –como o “Édipo precoce”– para resolvê-lo, senão na clínica ao menos na teoria. Arnaldo Raskovski foi além, para poder usar de um modo sincrônico categorias que se constroem diacronicamente: imaginou um “psiquismo fetal” que lhe permitia tratar o aparelho psíquico como já dado ao nascer. E Anna Freud, que não se autorizaria a subverter a letra do pai a esse ponto, incorpora o espírito rousseauniano exorcizado por ele, e se empenha, como educadora que era, em melhorar o processo edípico de modo a que o futuro adulto não precise tornar-se um neurótico. Ela, como o tutor de Rousseau, sabe de antemão em que consiste uma boa ressolução do Édipo, universalmente.

Já para Lacan, o problema dos mais novos seria outro; seria “não poder usufruir do seu ato”4. Observação assaz curiosa, sobretudo considerando-se nossa tenaz convicção de que nossos rebentos brincam ou fazem de conta, mas ato, o que se diz um ato, eles não cometem. Ato é coisa de gente grande, não de moleque. Não costumavam afirmar os psicanalistas que uma ação só podia ser tida como conseqüente no caso de o agente ter passado já pelo complexo de castração? Este, e não o desenvolvimento insuficiente da inteligência, parecia um argumento de peso a favor da inconseqüência infantil. Mas, nesse caso, como fica o mencionado ato cujas conseqüencias o infante não poderia usufruir?

Aliás, por que não pode? Talvez pelos adultos privarem-no disso ao assumirem, em seu lugar, o ônus da sua ação. Por outro lado, convém não esquecer que não é a toda e qualquer ação (quer tenha sido cometida por uma criança ou não) que cabe o qualificativo de ato. E a diferença radica menos nos fatos acontecidos que no modo como são acolhidos pelo meio social onde acontecem. De certo modo, poder-se-ia dizer que a última palavra, quando se trata de sancionar o status de ato de uma ação qualquer, é sempre do Outro.

Abordar a questão da neurose na infância pelo viés do ato parece um ângulo promissor. Ao menos, por não partir do pressuposto de que os menores de idade estariam fora do campo do direito, ou então incluídos como inimputáveis5. Deixariamos de tomar as crianças por irresponsáveis apenas por serem crianças. Mas também significaria renunciar a imaginar que sabemos antecipadamente em que consiste tal responsabilidade, já que está descartado, justamente, enxergá-las como adultos em miniatura. Em outras palavras, estamos sendo convidados a deixar de ser paternalistas com os filhos dos outros.

E não me escapa a ironia desta referência à proteção de um pai que desqualifica aquele que se encontra em posição de filho. É o caçula que acredita participar de um jogo de que na realidade está excluído6. E está aqui toda a questão: será que ele acredita mesmo, ou são os outros que precisam de ele “inocente”? Até hoje ouço referências a um paciente mirim que atendi há décadas e cujo tratamento contribuiu a me fazer a fama de “andar fora da linha”, no que concerne ao tratamento padrão. Tratava-se do menor de quatro irmãos bastante mais velhos que ele. Deixando de lado os problemas de conduta pelos quais o colocaram aos meus cuidados, da anamnese inicial de praxe eu retive que, além de ser o xodó da mãe, ele era sistematicamente tratado como café-com-leite pelos irmãos e pelo pai. Nos primeiros meses, o paciente ocupava a maior parte das sessões procurando brigar e me insultando do modo mais ofensivo que o seu vocabulário permitisse. Isso continuou até o dia em que decidi que já estava de bom tamanho e sai com ele ao quintal da casa na qual atendia com dois pares de luvas de full-contact (eu treinava na época), e nos atracamos durante uma boa meia hora perante os olhares espantados dos meus colegas de consultório. Esse foi não só o fim dos xingamentos (causados precisamente pela minha falta de resposta às provocações), como a condição que fez possível a psicanálise desta criança. Creio não errar se disser que as entrevistas preliminares terminaram no dia em que saimos “na porrada”. Longe de mim sugerir um preceito técnico neste sentido, ou negar que outra abordagem do caso fosse possível. O que digo é que com ele aprendi o que significa levar a sério uma criança enquanto criança, ou seja, nos termos em que ela mesma espera ser reconhecida, e não nos que nós acreditamos que ela deva enquadrar-se.

Outro menino, mais novo ainda, mal tinha aprendido a escrever quando decidiu justificar uma falta inexplicável na escola com uma nota assinada em nome do pai, que dizia algo assim como: “Meu filho não foi para aula porque passou mal. Dor de barriga. Água de hora em hora.” A orientadora pedagógica optou por levar a sério a vontade de enganar às autoridades escolares e repreendeu o aluno neste sentido. Já a mãe achou “coisa de criança”, ou seja, não deu importância ao gesto, e considerou desmedida a reação escolar. E o pai ficou espantado com o recurso ao fiador denotado pela passagem “água de hora em hora”, arremedo do discurso médico de que o garoto se apropriara em prol da verossimilhança “científica” da justificativa. A palavra paterna não era, pelo jeito, autoridade suficiente aos olhos do garoto: ainda era necessário arrimá-la com a do doutor. Não sei a quantas andava o rapaz com a própria castração, mas a do pai já lhe era bem familiar!

Não sei dizer qual teria sido a conduta mais adequada naquela situação. Nem do ponto de vista da escola, nem do da família. Porém, uma coisa me parece certa: o garoto queria ser levado a sério. Meses antes tinha chegado sozinho à mesma conclusão do mestre francês quando descobriu que o garçom do restaurante em que almoçava com a família só atenderia seu pedido de refrigerante se fosse feito por algum dos adultos sentados à mesa. “Ninguém te dá bola quando você é criança”, parece que declarou na ocasião. E pelo que soube mais tarde, decidiu dedicar os próximos anos a tentar deixar de ser criança o mais rapidamente possível. Uma pena, já que se e quando mudar de idéia sobre a sua decisão de pular a infância terá sido já demasiado tarde para ele…

 


 

1 Kafka, Franz. Die Erzählungen. Frankfurt: Fischer, 1996. Também, Dolar, Mladen. A voice and nothing more. Cambridge: MIT press, 2006.

2 Claro que o educador sabe perfeitamente onde está o bem e fará a sua letra entrar com sangue, sem poupar esforços ou torturas ao seu pequeno discípulo, em nome do que é melhor para ele. Depois de ler a história da educação, fiquei convicto de que a piada sobre a diferença entre o pedagogo e o pedófilo deve ser levada mais a sério (a diferença é que o pedófilo gosta das crianças).

3 “É preciso que à necessidade se acrescente a demanda para que o sujeito faça a sua entrada no real”. Lacan, 1961 (in Ecrits, p. 654)

4 Radmila Zyguris me contou ter ouvido isso dele.

5 Situação que os delinqüentes exploram muito bem “fazendo-os fazer” coisas bem irreversíveis, contando precisamente com a sua não punição, se forem pegos pelas “forças da lei”.

6 O que não exclui que haja quem continue café-com-leite muito tempo depois de já ter crescido…

 


 

São Paulo, fevereiro de 2008

Publicado em Nina V. de Araújo leite; Flavia Trocoli. (Org.). Um retorno a Freud. Campinas, SP: Mercado das letras, 2008,